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O português tem o jeito e o vício das discussões académicas: fazem, vezes de mais, com efeito, a sua delícia – duas opostas verdades abstractas, exaltadas e dissecadas a preceito, em jogos malabares de palavrio entrecruzado e emitidas à custa ou no alheamento das verdades concretas. É assim, por exemplo, que em Portugal se tem gasto mais tempo a discutir métodos de leitura do que ensinar crianças a ler. Acontece então que as coisas reais ou são infinitamente mais simples e infinitamente mais complexas do que as coisas pensadas. É natural que muitas tenham feito como eu a experiência edificante: Estudar um serviço com os que o conhecem melhor; verificar o seu funcionamento; desmontá-lo e torná-lo nas suas engrenagens. Se falarmos depois com um português de verbosidade média e inexperiência total do assunto, entra no domínio das coisas correntes: esse omnisciente e inconsciente senhor tem uma opinião categórica sobre o caso. Já repararem V. Exas., na formidável multiplicidade de problemas sobre os quais cada um tem uma opinião pronta a exibir? É meu parecer que esta disposição pouco recomendável se desenvolve sobretudo graças à vida provinciana que temos vivido, ao mau hábito mental de não tomarmos ar, sair, viajar, ver ou mandar ver para adoptar ou adaptar, e, pelo contrário, confinados no bafio das nossas meditações de isolados (ainda o disse recentemente) passarmos todos, mais ou menos, metade da existência a inventar as coisas que já estão inventadas. Não possuímos dest’arte, muitas vezes, nem senso aguçado nem tenacidade nem confiança bastantes para decidir. Os grandes problemas coloniais e nomeadamente o primeiro entre todos – o da política colonial – tem consideravelmente sofrido com esse academismo. Gastámos tempo demais, com efeito, a discutir por qual dos dois sistemas de política colonial devíamos optar – se pela assimilação, ou pela autonomia. Discussão estéril, nos termos em que foi posta. Na minha humilde opinião, acho que é muito mais interessante, em vez de confrontar as duas teses, considerar a realidade portuguesa. Essa realidade diz-nos insofismavelmente duas coisas. A nossa maneira de colonizar – é insuflar a alma própria. Estamos, neste particular, no polo oposto dos ingleses, grandes colonizadores aliás como nós, com um acentuado sentido do real também, mas para quem o Império é feito pelas diferenciações e justaposições de um mosaico. É preciso contar com essa feição própria no nosso caso que, longe de cultivar a distância, antes se aplica a entender e a ganhar o indígena. Foi assim (não devemos esquecê-lo; é uma primeira experiência concludente) que fizemos o Brasil à nossa imagem. É assim que hoje ainda não só vivemos, mas convivemos com o nativo no interior africano. Quer dizer, se desconhecermos esse modo de operar – renegamo-nos a nós próprios e, abdicando desse jeito de latinos, não há para nós obra possível. Não foram nem são excedentes demográficos nem pletoras de capital que fizeram as nossas colónias. Foi essa arte subtil. A segunda realidade que devemos ter presente é que uma colónia se não governa de longe no seu expediente diário. A esse respeito a revolta contagiosa de Mouzinho foi o grito do homem a quem quebraram os braços. De longe – talham-se ou aprovam-se os planos, fixa-se o modo geral de proceder, assiste-se carinhosamente a obra em curso e corrigem-se com inteligência os seus desvios. Escrevi há alguns anos o seguinte, onde não encontro uma linha emendar: «O optimismo oficial que esperasse apenas da letra de quaisquer estatutos uma qualquer influência mirífica arriscaria muito em enganar-se. O ministro das Colónias, a quem deve ficar a primeira e a última palavra, mas que se dispensasse para o intervalo de escolher governadores dignos desse nome, correria também o risco de comprometer a utilidade da sua acção. Porque não há correio, não há telégrafo, não há telefones, com ou sem fios, que possam suprir de longe a carência dos governadores». Não há leis sobretudo que possam suprir os homens. Que querem V. Exas? Decididamente o meu espírito, que se não compraz no academismo de discussões de luxo, também não o fetichismo da lei. Com humildade o reconheço: sou um inadaptável aos usos correntes. Prefiro, continuando no exame do que há de premente em matéria de política colonial, e antes de captar o que me parece ser o seu sentido mais propício, manter a minha atenção sobre dois processos de trabalho que me dão mais confiança do que todo um arsenal legislativo. Ambos esses processos de trabalho foram esboçados com coragem pelo Sr. Ministro das Colónias. Serão, quando levados mais adiante, de consequências transcendentes.
(Continua)
Lugar e destino de Portugal: a Nau e a Tormenta (06)
Lugar e destino de Portugal: a Nau e a Tormenta – conferência feita na Sala de Portugal da Sociedade de Geografia de Lisboa, em 9 de Maio de 1942. Na sessão solene de encerramento da «Semana Colonial» - Fernando Emygdio da Silva, prof. da Faculdade de Direito Consultar todos os textos »»
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