21 de novembro de 2024   
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Os portugueses foram ao Oriente com altos pensamentos religiosos, políticos, comerciais. Mas parece claro que essas concepções não importavam a conquista dos territórios, a sujeição das populações: apenas um pé em terra firme para daí se garantir a segurança dos mares e as novas rotas de tráfego. Nesses minúsculos territórios cedidos ou militarmente ocupados, o sangue português fundiu-se generosamente com os das gentes locais; mais de quatrocentos anos de vida comum, de uma presença espiritual, da insuflação de uma presença diferente, da interpenetração de culturas, criaram um tipo social perfeitamente diferenciado. Por mais que se queira, um português da Índia, um luso-indiano, não se confunde com o natural da União. Todos os que visitam Goa, idos da União Indiana, não atravessam só uma fronteira política, mas uma fronteira humana, uma criação original do Ocidente, orientalizada ao contacto da cultura milenária de Índia.
Tenho notado contradições na argumentação apaixonada da União Indiana e uma das mais gritantes é esta: para se arrogar o direito de absorver Goa, diz-se que esta é Índia, pela raça, pela religião, pela cultura; para se captar a simpatia dos goeses, promete-se-lhes que se respeitarão as actividades religiosas e os elementos culturais distintos daquela pequena comunidade. A verdade está porém no reconhecimento das diferenças e não no paralelismo das semelhanças. O pequeno Estado da Índia é efectivamente uma província de Portugal e precisamente aquela a que estão ligados alguns dos maiores nomes que a Nação Portuguesa pôde dar à História Universal.
Eis porque repugna à sensibilidade dos Portugueses – e essa repugnância tem a sua expressão jurídica no texto constitucional – negociar a cedência de Goa e a cidadania portuguesa dos seus habitantes e não curar da sua defesa até ao limite das nossas forças.
Estas coisas, de ordem exclusivamente moral, podem parecer estranhas ao materialismo dos tempos e são contestadas pelos que alimentam desígnios contrários. Mas estes mesmos têm a prova de tais coisas corresponderem a uma realidade viva, no comportamento dos goeses, já não digo dos que habitam Goa, mas dos que vivem nos territórios da União Indiana: devendo-lhe o trabalho e naturalmente receosos das mais diversas formas de pressão, nem por isso abdicam da sua qualidade de portugueses. Bem se sabe a dificuldade de arregimentar as poucas dezenas para as manifestações hostis…
É certo que se têm transaccionado através dos tempos territórios ditos coloniais. Napoleão vendeu a Luisiânia; a Espanha ainda em 1898 cedeu Porto Rico; há três séculos, nós mesmos fizemos de Tânger e Bombaim presente de noivado de uma infanta portuguesa; mais de uma vez no século XIX, a Inglaterra nos propôs a compra de Goa. Tudo é historicamente exacto, e nada temos a dizer a isso senão que, apesar do pequeno valor económico do estado da Índia, a nossa reacção foi sempre igual e que o elemento de direito de propriedade, transparente nesse conceito de soberania, não existe no direito público português.
Ainda que nalgumas partes da Ásia se continue a alimentar para fins políticos o sentimento de abominação do Ocidente, e fossem quais fossem os excessos praticados por estes ou aqueles em passados séculos, isso não pode impedir-nos de reconhecer quanto toda ela deve às nações que, com esforço sobre-humano, alargaram as fronteiras do mundo conhecido e trouxeram a mais íntimo convívio todos os povos da Terra. A mesma justiça devemos prestar ao Oriente pelas contribuições de toda a ordem que dele receberam as nações ocidentais. Apesar de tudo, parece que a Europa se sente hoje envergonhada e repesa dos actos dos seus descobridores e do alto pensamento que os conduzia, e o mais discretamente possível procura apagar os seus vestígios. A verdade, porém, é que o progresso se mede ainda por todo a parte pelo grau de ocidentalização que se atinge e as regressões se verificam no sentido contrário.
Quanto a nós, parece-nos indiscutível que a Índia tem para com Portugal uma dívida – ter-lhe aberto as portas do Ocidente e tê-la posto em estreito contacto com os princípios de uma cultura, benéficos para a sua própria evolução. E ousamos ainda dizer mais: se essa acção espiritual pudesse ter sido mais larga e profunda, a Índia, que procura moldar as suas instituições no cunho ocidental, não encontraria na sua feliz independência problemas tão graves como os que se lhe deparam agora. Lutamos por que, sem agravo para ninguém, Goa continue a ser o padrão dos descobrimentos portugueses e pequeno foco do espírito ocidental no Oriente, o qual, para se manter vivo, precisa de estar ligado às origens, como o fio de água à nascente.


Florilégio de pensamentos- Algumas das Mais Belas Páginas de Salazar (53)

Os portugueses foram ao Oriente - Discursos, Vol. V, págs. 186 e 190
Edições Panorama - Lisboa 1961

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Música de fundo: "PILGRIM'S CHORUS", from "TANNHÄUSER OPERA", Author RICHARD WAGNER
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