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A grande crise da Europa é não saber conservar a paz dentro de si mesma. Tem ainda o primado da ciência, da literatura, das artes possui os segredos da técnica; sabe organizar o trabalho; mas não sabe ter paz. A origem do seu mal não reside propriamente na densidade da população, no esgotamento do solo ou do subsolo, na estreiteza das terras ocupadas, mas numa doença do espírito. E, como a antiga Roma, em certo momento da sua decadência, parece já «não poder suportar nem os males nem os remédios». A força essencial à vida das sociedades não é a última ratio, é a primeira; dela deriva a moral, o direito, a organização social; e nestes termos já não assegura a paz, gera a guerra. Ou a fazer a guerra ou a armar-se para ela, a Europa, apesar de intenso trabalho e duras restrições, empobrece enormemente: divisa-se a crescente proletarização das nações europeias e diante da hipertrofia do Estado que, a título da defesa colectiva, concentra em si toda a riqueza e poder, os homens limitam-se a esperar, em troca de trabalho servil, o suficiente para as necessidades fundamentais da vida. Mas neste extremo tem desaparecido aquela parcela de liberdade e dignidade humana que nós teimamos em crer essenciais à vida civilizada. O definhamento da economia como a diminuição moral do europeu põem em sério risco a resistência da Europa perante eventualidades que podem não ser meras criações do espírito, pois é frágil e precária a força dos Estados - pese o facto embora às imaginações exaltadas que deliram ante as vitórias e as conquistas. A força dos Estados depende da sorte vária das batalhas; para além disso o que vale e conta é a organização da vida e a força moral dos povos, se pelos mesmos princípios de morte não tiverem sido ainda destruídos. Para haver paz não é suficiente a arrumação étnica das populações, nem os acordos económicos, nem a segurança natural das fronteiras. Tão-pouco a alcançam as combinações diplomáticas que não se baseiam na coexistência de interesses reais, nem as criações artificiosas da política, nem a teimosia de sustentar contra a pressão da vida o que nem a história nem a geografia se encarregaram de consagrar e manter. A paz é sobretudo uma criação do espírito, fruto cia força que se limita, isto é, da consciência que sabe distinguir e respeitar a linha de separação do direito próprio e alheio e até sacrificar o seu interesse a interesse maior que lhe é estranho. Crise europeia, crise do espírito; crise do espírito, crise de civilização. No seio da Europa gerou-se uma civilização especificamente sua, que é a civilização latina e cristã. À sombra desta se formaram espiritualmente todas as nações da Europa e da América e do seu influxo muitas outras beneficiaram em diversas partes do mundo. Se nessa herança moral, que é a nossa, há princípios eternos de verdade e de vida social, reputamos do nosso dever gritar a fidelidade a esses princípios: tanto mais quanto mais esquecidos e violados; tanto mais justificadamente quanto anda alarmado o mundo e perplexa a consciência dos povos que se interrogam ansiosos sobre se haverá ainda, no meio desta derrocada, lugar à verdade, à honra, à justiça, à legitimidade do direito, ao bem comum dos homens e das nações. Nem nós podemos crer – e bastas vezes o temos afirmado - que uma nação como a Rússia, que exactamente renegou desses princípios seja quem vem – piedoso cireneu – ajudar a restabelecê-los na Europa ocidental. Mas isso são apenas afirmações de princípio; por justificado melindre não farei quaisquer aplicações à situação actual. Duas excepções abro apenas: a primeira para dirigir uma palavra de funda simpatia à nação polaca, à qual queremos prestar a homenagem devida ao seu heróico sacrifício e ao seu patriotismo; a segunda para dizer que, não contentes de auxiliar a obra da paz com a nossa paz, por ela trabalharemos, e daremos a nossa colaboração aos que trabalhem, quando convencidos da utilidade do nosso esforço, para o estabelecimento de condições que dêem à Europa segurança e justiça.
Florilégio de pensamentos- Algumas das Mais Belas Páginas de Salazar (41)
A grande crise da Europa é não saber conservar a paz - Discursos, Vol. III, pág. 182 a 185 Edições Panorama - Lisboa 1961
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