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Os homens do governo, suponho eu, têm o seu sistema de ideias ou simplesmente as suas ideias, se não conseguiram ainda determinar-lhes a síntese superior. Por trás daquelas que se desdobram em regras ou transparecem na acção, há outras, e acima destas ainda outras, três, quatro, uma dúzia, ideias mestras, ideias mães das outras ideias, atitudes de espírito – dúvidas ou certezas – respostas da inteligência, em todo o caso, às grandes interrogações da humanidade. Nunca se pôde negar que o Estado, no que tem de dinâmico, representasse uma doutrina em acção. Simplesmente aos que detinham o poder, fizeram acreditar que não deviam tê-la, os mesmos doutrinários que sobre a fraqueza de uma autoridade sem norte, pretendem estabelecer o seu poderio e operar a realização do seu pensamento de destruição e de morte. Eis porque começa já a não assustar ninguém que os homens públicos apresentem claramente os seus modos de ver, não apenas nas questões de administração corrente, suscitadas pelas necessidades do dia, mas naqueles problemas que a sociologia e a filosofia guardavam avaramente para si. Ao contrário: sente-se que, perante correntes ameaçadoras da ordem social e dos princípios básicos da nossa civilização, desenvolvendo-se em combates ferozes para a conquista e destruição do estado, os povos já se não sentem tranquilos com governos oportunistas e contemporizadores, navegando ao sabor da maré, sem rumo definido, ainda que apresentem força; eles anseiam por uma directriz segura, por uma ideia contra outra ideia, por um sentimento contra outro sentimento, por uma doutrina, por um credo. Ora, por mais cuidadosa que seja a acção governativa, e lógica, e rígida, os espíritos observadores encontrarão sempre intermitências, recuos transitórios, pequenos desvios, algumas contradições, aparentes ou reais. Tomando-as uma por uma, bem pode o crítico fazer construções de conjunto afastadas da realidade, pôr em conflito ideias que não se contradizem, definir mentalidades que não existem de facto. Quer dizer: as dificuldades de um juízo seguro não diminuem, aumentam com os pormenores que parece deviam esclarecer tudo, com as aplicações práticas que se haviam de julgar eu tudo filhas legítimas das ideias do governo.
Florilégio de pensamentos- Algumas das Mais Belas Páginas de Salazar (03)
Os Homens de Governo e as suas ideias – Em Salazar, de António Ferro, págs. XI a XIII Edições Panorama - Lisboa 1961
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