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Quando, na manhã de 28 de Abril de 1928 — faz hoje, precisamente, vinte anos — lemos nos jornais o breve e expressivo discurso do novo Ministro das Finanças, Doutor António de Oliveira Salazar, tivemos imediatamente a clara sensação de ouvir uma voz diferente das outras, pelo menos de todas as que estávamos habituados a escutar nos actos fundamentais da vida pública. Nenhum vestígio daquela espécie de obrigatória modéstia oficial que levava os homens investidos em responsabilidades de governo a declararem-se invariavelmente surpreendidos com a sua designação e a confessarem o seu embaraço e a sua insuficiência. Pelo contrário: a afirmação de uma vontade forte e de uma directriz segura : — «Sei muito bem o que quero e para onde vou». Nenhum vestígio, também, daquela fácil demagogia que sistematicamente acumulava lisonjas e promessas, sem sinceridade quanto às primeiras e sem veracidade quanto às segundas. Pelo contrário: a nítida prevenção de que o País deveria estar disposto «a todos os sacrifícios necessários» e, embora esclarecido a cada momento, e com a faculdade de estudar e discutir, deveria obedecer «quando se chegasse à altura de mandar». E o novo Ministro reclamava a confiança geral na sua inteligência e na sua honestidade — «confiança absoluta mas serena, calma, sem entusiasmos exagerados nem desânimos depressivos». Era, com efeito, uma voz diferente das outras. Quem parou a atendê-la e a medir o alcance das palavras proferidas, ficou logo dominado por um grande respeito e por uma grande esperança. Não tardou que surgissem novos motivos para confirmar um e outra. Mês e meio corrido, a magistral exposição feita no Quartel General de Lisboa — a 9 de Junho — intitulada «Os problemas nacionais e a ordem da sua solução» ; nos anos seguintes, os grandes discursos «Política de verdade. Política de sacrifício. Política nacional», «Ditadura administrativa e revolução política», «Princípios fundamentais da revolução política», «Elogio das virtudes militares», tantos mais! O prestígio de Salazar crescia com os êxitos da sua actuação de governante — e, simultaneamente, aquela voz diferente das outras ganhava audiência cada dia maior no País e os seus ensinamentos, as suas explicações, os seus avisos, os seus juízos e conselhos cada dia adquiriam maior ressonância e maior autoridade. Falava umas vezes a poucos, outras a muitos — no entanto, sentia-se que sempre desejava falar para todos. E certo é que todos o entendiam e o seguiam e que, vencida a surpresa inicial perante a singularidade dos seus processos e das suas fórmulas, cada um dos seus discursos gravava-se profundamente na consciência nacional. Seria exacto, ao verificar como o seu ascendente aumentava e como frutificavam as suas lições — dizer que se tratasse de um autêntico orador? Parecem uma resposta a esta pergunta os seguintes períodos da Introdução ao volume primeiro dos Discursos: — «A oratória tem suas exigências e regras, descobertas pela razão e pela experiência, e próprias para a consecução dos seus objectivos; mas satisfazer essas exigências e obedecer fidelissimamente a essas regras nunca puderam dispensar a verdadeira eloquência. Esta não é o brilho da forma, nem a loquacidade do orador, nem a inteligência do assunto, nem a correcção do dizer, nem a majestade e movimento da exposição, nem a propriedade dos gestos, nem a riqueza das modulações vocais — nada disto só por si, certamente alguma coisa de tudo isto, mas sobretudo esse dom misterioso de comunicabilidade pela palavra falada, possuído por homens raros, e com o qual, nos termos clássicos, se convence, se deleita e se persuade aos ouvintes». Um pouco mais adiante: — «Na oratória, em que a reacção do auditório é contemporânea da produção do discurso, a vida e glória deste dependem do efeito em extensão, mas a acção futura nos espíritos provém do efeito em profundidade». E, depois de se acentuar ainda: — «Os espíritos de feição sintética não podem dar oradores», conclui-se: — «De tudo isto resulta ser aqui mais fortemente solicitada a inteligência que a vontade, ser comedida a emoção, encadeados os raciocínios, mais que moderadas as paixões, em suma, serem frios estes discursos em país de sentimentais». Eis como Salazar responde à pergunta formulada — e, creio que nos fornece elementos bastantes para respondermos também. Tudo se condensa na noção a escolher sobre o que seja o verdadeiro orador. Se é o tribuno de gesto teatral, de timbre poderoso, de máscara variável, atento às reacções que provoca, engenhoso na exploração dos temas de momento, apto a improvisar à medida que os ouvintes lhe revelem aquilo que dele esperam, capaz de desenvolver bruscamente o ponto de vista que lhe renda a aprovação do público e de evitar ou suspender o que vê mal acolhido pela maioria — então, não merece tal título o Chefe do Governo Português. Mas se o verdadeiro orador é o homem que fala para ensinar e comunicar, para desfazer dúvidas e iluminar caminhos, para abrir perspectivas novas aos espíritos e ajudar quem o ouve a melhor compreender o que se passa no mundo e em si próprio — ninguém merece melhor ser designado como orador verdadeiro. E o não se dirigir às paixões efervescentes, às vaidades de ocasião, ao gosto pela utopia em que tantos se perdem, à cómoda volúpia de imaginar tudo segundo as preferências ou ilusões de cada um — só valoriza e enobrece a sua forma de eloquência, que não se contenta com o tal efeito transitório em extensão (mas o obtém apesar de tudo), visa apenas, desinteressadamente, o efeito em profundidade e por isso dura muito para além dos últimos ecos que desperta. Quem tem assistido, como eu tantas vezes, a um discurso de Salazar, não esquece mais a maneira como esse efeito em profundidade se exerce gradualmente. A princípio, ante a expressão fechada, as frases breves, a voz um pouco monocórdia, o desdém absoluto pelo histrionismo e pela mímica sugestiva — há uma certa estranheza e, mesmo, uma vaga decepção. Além disso, a tensão intelectual, o carácter elíptico de um ou outro período, a ambiguidade voluntária de uma ou outra observação, a
(Continua)
SALAZAR - testemunhos... (13)
Discurso proferido por João Ameal, escritor, da Academia Portuguesa da História, por altura do XX aniversário da entrada do Prof. Salazar no governo. Abril 1948. Consultar todos os textos »»
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