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Nós adulterámos o conceito de riqueza; desprendemo-lo do seu fim próprio de sustentar, com dignidade, a vida humana; fizemos dele uma categoria independente que nada tem que ver com o interesse colectivo nem com a moral, e supusemos que podia ser finalidade dos indivíduos, dos Estados ou das nações amontoar bens sem utilidade social, sem regras de justiça na sua aquisição e no seu uso. Nós adulterámos a noção de trabalho e a pessoa do trabalhador. Esquecemos a sua dignidade de ser humano, pusemos diante de nós o seu valor de máquina produtora, medimos-lhe ou pesámos-lhe a energia, e não nos lembrámos sequer de que ele é elemento da família e que nele só não está a vida, mas na mulher, nos filhos, no lar. Fomos mais longe: dissociámos este; chamámos a mulher e a criança como valores menores, mas mais baratos, de produção — unidades soltas, elementos igualmente independentes uns dos outros, sem ligações, sem afectos, sem vida em comum — e desfizemos praticamente a família. Dum só golpe desmembrámos o núcleo familiar, aumentámos a concorrência dos trabalhadores com o trabalho feminino, e não lhe demos em salário o correspondente à produtividade da boa dona de casa e à utilidade social da exemplar mãe de família. Desligámos o trabalhador do quadro natural da sua profissão: liberto dos laços associativos, ficou só; sem a disciplina da associação, ficou livre, mais frágil. Depois transigimos em que se agremiasse com outros, e ele fê-lo, como reacção, não para um fim de solidariedade e consciente da necessidade de coordenação de todos os elementos na ordem de produção da riqueza, mas contra alguém ou contra alguma coisa: contra o Estado, que é a garantia da ordem; contra os patrões, suposta classe inimiga; até contra outros operários, na fatal repercussão das violências e excessos praticados ou das imposições que, realizadas num sector, desequilibram, por vezes e em detrimento dos mesmos trabalhadores, os outros ramos da produção. Nem elevação intelectual ou moral, nem aperfeiçoamento técnico, nem instrumentos de previdência, nem espírito de cooperação — apenas ódio, ódio destruidor. Impelimos o Estado, primeiro para a passividade absoluta, que nada tinha ou queria ter com a organização da economia nacional, e depois para o intervencionismo absorvente, regulando ele a produção, a repartição, o consumo das riquezas. Sempre que o fez, onde quer que o fez, esterilizou as iniciativas, sobrecarregou-se de funcionários, agravou desmedidamente as despesas e os impostos, diminuiu a produção, dilapidou grandes somas de riqueza privada, restringiu a liberdade individual, tornou-se pesado, insuportável inimigo da Nação. Os que, cegamente impelidos pela lógica de seus falsos princípios, quiseram ir até às últimas conclusões, montaram a máquina com o espavento dos grandes planos, o rigor aparente da ciência e da melhor técnica mas trabalhador livre, o «homem», esse desapareceu, arrastado na colossal engrenagem, sem elasticidade e sem espírito, mobilizados os operários como máquinas ou transferidos como rebanhos de gado porque numa região se acabou a erva dos pastos. Sim, a crise de que sofremos vai certamente passar, mas o essencial é saber se a doença que infecciona a economia das sociedades modernas não será finalmente atacada, porque, se se está fazendo aos nossos olhos o processo da democracia e do individualismo, o processo da economia materialista, esse está feito: todos vemos que faliu. Está-nos, portanto, vedado esse caminho, e eu não vejo outro que não seja substituir os graves erros que têm viciado a visão dos condutores de homens no mundo por conceitos equilibrados, justos, humanos de riqueza, de trabalho, de família, de associação, de Estado. O desequilíbrio das diferentes peças do nosso vestuário — muito mais pobres as interiores do que as de fora — e das salas das nossas casas, em que a comodidade se concentra para nada na sala de visitas e a higiene não existe nos quartos, são aspectos banais, pitorescos, se quiserdes, de problema que no fundo é grave. A cultura, a educação costumam corrigir um tanto alguns destes defeitos, mas em Portugal de há séculos que a vida social tende para mentirosas exteriorizações, e que se nota grande falta de correspondência entre o aparato externo e a parte verdadeira do nosso viver. Abandonado o problema às tendências viciosas da humanidade, foi -lhe dada solução que é em parte absurda: a produção desenvolveu, explorou este desequilíbrio em seu proveito, exagerou os consumos artificiais, criou em avalanche necessidades puramente fictícias, e resultou daí que ainda não há o estritamente indispensável para a vida e já há sobre produção do que poderia escusar-se.
(Continua …)
O PROBLEMA DA RIQUEZA; SUA FUNÇÃO SOCIAL; CAPITAL E TRABALHO (02)
(«Conceitos económicos da nova Constituição» — Discurso radiodifundido da União Nacional, em 16 de Março — «Discursos», Vol. 1, págs. 190-192, 193-196, 196-197 e 198) – 1933 Consultar todos os textos »»
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