19 de abril de 2024   
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(Continuação)

ausência de imagens triviais — dificultam o acesso imediato ao pensamento que está a exprimir-se diante de nós. Pouco a pouco, todavia, a claridade progride, o desenrolar dos raciocínios atinge-se melhor, o plano de conjunto abarca-se na sua harmonia e no seu alcance, descerram-se horizontes vastos, deparam-se conclusões imprevistas mas de inexcedível rigor lógico — e eis que se estabelece uma corrente de adesão e de simpatia entre o homem que fala e os que, ao ouvi-lo, sentem uma espécie de exultação da inteligência, uma alegria das mais altas e das mais puras, e lho agradecem em constantes aplausos e acabam por ter de reconhecer que saem mais ricos do que entraram…
Sublinhe-se, ainda, que Salazar, mestre da língua, lhe dá, nos seus escritos, clareza irradiante, precisão modelar, excepcional densidade. E isso permite-lhe compor certas legendas que se tornam lemas da vida colectiva ou da vida individual. Quem não os tem presentes, a cada hora? «Nada contra a Nação, tudo pela Nação» ; «Temos obrigação de sacrificar tudo por todos; não devemos sacrificar-nos todos por alguns»; «Os homens que se habituam a cumprir sempre e só o seu dever, pouco se lhes dá do lugar que ocupam; interessa-lhes muito desempenhá-lo bem» ; «Deve o Estado ser tão forte que não precise de ser violento» ; «O Estado vai deixar de fazer favores a alguns para poder distribuir justiça a lodos» ; «Temos uma doutrina e somos uma força» ; «Aqui não reside o temor» — inscrição para os quartéis da Legião; «Mais e melhor» — exortação à Mocidade Portuguesa; «Todos não somos demais para continuar Portugal» . . . Cito ao acaso, de relance, as sínteses lapidares que me acodem à memória, que andam na memória de toda a gente. Nada mais belo — e nada mais conciso.
Mas — o próprio autor o disse — «os espíritos de feição sintética não podem dar oradores». Tanta concisão implicará frieza e secura exageradas?
Não. A concisão de Salazar não é secura nem frieza. É vulgar descobrir-se, de súbito, nos seus textos austeros, uma nota de coração, um aflorar de enternecimento, urna pulsação de sensibilidade. Quando deixa escapar, por exemplo, aquela confissão impressionante de ser daqueles que «trabalham com afinco, com raiva . . . porque uma mulher tem fome ou chora de frio uma criança»...
Nem frieza, nem secura: — equilíbrio. Auto-domínio. Jerarquia de valores. Cultura assimilada e selecção cuidadosa. Pudor mental e pudor verbal. Respeito pela dignidade própria e alheia. Numa palavra apenas: — classicismo. Definiu Barrés: — «devenir classique — c’est devenir plus honnête». Isto depois de expor a famosa antítese de clássicos e românticos — e de acusar os últimos de empregar, a todo o propósito, e mesmo a despropósito de tudo, «palavras maiores do que as coisas»…
Classicismo. E já se têm ensaiado paralelos referidos à nossa história literária: Vieira, Bernardes, Eça de Queiroz… Em Salazar, reaparecem, de facto, determinadas características destes e outros grandes prosadores portugueses: a amplitude e a majestade de Vieira, a simplicidade e a harmonia de Bernardes, a limpidez e a agilidade irónica de Eça. Tudo, porém, integrado noutro ritmo de frase, noutro sabor, noutro desígnio. A sua personalidade ‘de escritor e de orador não se confunde, não se esgota em qualquer desses paralelos.
Por isso fez escola — como aconteceu aos outros genuínos criadores de novos estilos. Por isso, depois de Salazar, passou-se a escrever e a falar, em Portugal, de outra maneira.
Considero-o, pois, orador autêntico — e um grande orador, O tipo exemplar do orador político do nosso tempo. Porque não estamos somente diante de um orador — mas diante de um pensador. E é por ser esse pensador que os seus discursos não são constituídos por aquelas palavras que o vento leva.
Pensador verídico, objectivo, leal. Porque é leal, não lisonjeia, não deforma, não exagera, não evita dificuldades, não poupa censuras quando merecidas, não promete além do que lhe seja possível cumprir. Porque é objectivo, apreende as questões como elas se apresentam e não como seria bom que se apresentassem; nunca se afasta da viabilidade e da relatividade da condição humana; nunca perde de vista que a política é (como resumiu um Professor da Universidade do Cairo, Marcelo de La Bigne de Villeneuve) «ciência do concreto». Porque é verídico, mostra-se incapaz de falsear ou alindar aquilo que sabe ser temível ou lamentável; prefere desagradar a desfigurar; não engana — e: recompensa devida — não se engana. A palavra, para Salazar, não esconde o pensamento; antes cristaliza ideias.
E eu creio mesmo que a obra prodigiosa executada pelo Estadista resulta, precisamente, de ser um pensador assim.
Primum vivere; deinde, philosophare. Na conhecida máxima, encerravam os antigos um conceito empírico e um tanto rasteiro da vida. Bem sei que visavam aquela espécie de homens lunáticos e estéreis que se gastam em discussões ou em divagações e não chegam a angariar, por si, os meios de existência. Bem sei. Noutra ordem de raciocínios, porém — e mais ainda numa época desvairada e confusa, cheia de sobressaltos vãos e de espíritos sem norte, — não seremos tentados a ver o problema ao contrário, a pôr às avessas o conselho famoso, a admitir como preferível filosofar primeiro e viver depois?
Que é filosofia? As definições sugeridas são inumeráveis. Esta noite seria pequena para as mencionar e discutir. Fixemo-nos no lugar-comum, geralmente aceite, que a entende como ciência das causas. Donde vem o homem? Quem é? Para onde vai? Estas as perguntas familiares a todo o filósofo. E já se tem dito com acerto que ninguém, qualquer que seja o seu nível e o seu estado, pode, humanamente, eximir-se a pô-las a si mesmo algum dia. Se as não põe, talvez não mereça chamar-se um ser humano. Se as põe e não consegue achar as respostas, pobre dele, porque está condenado a uma dúvida incurável, a uma perplexidade sem fim — ignorante da sua origem, da sua missão, do seu destino. Só quando possui essas respostas, se satisfaz com elas, crê nelas e por elas regula a sua conduta e as suas aspirações — ganham certeza os seus passos e se afirma pronto a desempenhar o seu papel no mundo. Desde que disto nos convençamos, então parece justificado inverter o velho aforismo, dar o primado à causa sobre o efeito, à ideia condutora sobre a actividade comum, ao permanente sobre o variável, à substância sobre o acidente — e concluir: filosofar, primeiro ; só depois, viver!
Sempre considerei uma das chaves da personalidade de Salazar certo trecho de um dos

(Continua)

SALAZAR - testemunhos... (14)

Discurso proferido por João Ameal, escritor, da Academia Portuguesa da História, por altura do XX aniversário da entrada do Prof. Salazar no governo. Abril 1948.

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Música de fundo: "PILGRIM'S CHORUS", from "TANNHÄUSER OPERA", Author RICHARD WAGNER
«Salazar - O Obreiro da Pátria» - Marca Nacional (registada) nº 484579
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