28 de março de 2024   
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(Continuação)

Em problemas mais complexos, tal como o da orgânica política, em que as paixões humanas perturbam o estudo sereno da questão, encontramos o mesmo aspecto de trabalho científico, apesar da dificuldade de tal procedimento. Com efeito, ao invés do que sucede quando se manejam dados concretos, cuja legitimidade é facilmente verificável, em matéria de sociologia, e de política, é forçoso trabalhar com amostras de situações, com sínteses que tocam as raias da abstracção, é preciso apurar o raciocínio para que não deslize para erradas calhas, é necessário cuidar a terminologia para evitar o risco de cair no verbalismo sem significação exacta. A tarefa é tão difícil que geralmente os estadistas fogem à exposição metódica, pelo processo docente, de temas dessa natureza; vão para as afirmações dogmáticas, falando muito mais aos sentimentos do que à inteligência. Salazar, porém, manteve-se fiel à feição docente; assim o prova este outro exemplo:
Era em Maio de 1930, naquela época de incertezas, quando todos perguntavam qual seria o destino da ditadura. Olhando para os homens que se interessam pelas coisas públicas, Salazar condensou as opiniões várias em três tipos de opinião: I.°) a Ditadura nada tem que ver com a política; 2.°) a Ditadura é a solução do problema político; 3.º) a Ditadura deve resolver o problema político. Pôs desta maneira os dados da questão, as três proposições a estudar. Vem a seguir a análise de cada uma delas. Mostra como a administração pública não pode separar-se da política, porque tem de obedecer a princípios superiores que são de ordem política, sob pena do esforço administrativo se perder por falta de continuidade e orientação definida por uma doutrina. Comenta a seguir o regime de ditadura, instrumento delicado, que facilmente se gasta e de que facilmente se pode abusar, convindo limitar a sua duração. E excluídas essas duas proposições, indica a necessidade e a possibilidade de realização da terceira, que dê ao país uma orgânica constitucional, capaz de assegurar a ordem social e jurídica, a paz pública e a prosperidade geral.
Dois meses depois, Salazar completou esse discurso, falando sobre os princípios fundamentais da revolução política. E usou o mesmo processo. Pôs os dados do problema: o caso português como manifestação local da crise do Estado moderno, falho de autoridade e de estabilidade, à mercê das paixões desencadeadas por interesses inferiores. Comentou a fórmula do Estado omnipotente, reacção violenta contra a mencionada crise, contrapondo-lhe o Estado forte, mas limitado pela moral, pelos princípios do direito das gentes, pelas garantias e liberdades individuais, que são exigência superior da solidariedade social. E da análise sucessiva dos factores da crise, deduziu a necessidade do fortalecimento do poder executivo e da coordenação social, por colocação de cada indivíduo nos grupos naturais correspondentes aos aspectos da sua vida, na família, no agregado social, e na profissão.
Em toda a sequência dos raciocínios que presidiram à elaboração destes discursos sente-se o mesmo espírito de estudo objectivo das questões, o mesmo método de trabalho mental, e a mesma propriedade de exteriorização verbal. Estamos imensamente longe da forma vulgar do discurso político.
Os discursos de Salazar, em que explica a sua actividade política, são estudos feitos à maneira de lições. E na realidade, têm sido verdadeiras lições. Como vamos ver.
As consequências de um tal sistema, a que Salazar chamou, em felicíssima expressão — a política da verdade —, foram enormes. Pela primeira vez, creio eu, o país viu o homem a quem estavam entregues poderes de governação, expor-lhe os grandes problemas nacionais, estudando-os em voz alta, por todos audível, e indicando a genuinidade dos meios que se adoptavam para os resolver, ou colocando dúvidas sobre certas hipóteses de realização.
Insensivelmente, nós, os governados, fomos levados a adoptar procedimento semelhante na apreciação das coisas públicas, a coibir a nossa vivacidade de latinos, pronta a concluir sem prévia ponderação, com fatuidade e ligeireza. As lições de Salazar, ditas das cadeiras do Governo, mais do que obra instrutiva foram agente educador, cuja influência excede a sua finalidade imediata e se prolonga para além da época em que foram pronunciadas.
Salazar, impregnado de espírito docente, continuou no Terreiro do Paço a ensinar. A influência, que a formação de professor estudioso teve sobre a maneira de tratar os problemas nacionais, é incontestável. Falta, porém, indagar se ela é suficiente, ou pelo menos dominante, na explicação dos seus actos de governo e do seu sucesso político.
É inegável que não pode governar bem quem não conhecer os problemas a resolver, quem os não souber estudar com espírito científico. Mas isso não basta. Da concepção doutrinária à acção vai uma grande distância. Pode ser-se um intelectual magnífico e um pobre realizador, como se pode dar o contrário; mas, então, em regra, o resultado só por acaso estará certo. Em Salazar, pensamento e actuação marcham harmonicamente. Essa faculdade não se cria, nasce com aquele que a possui. Ela é o complemento indispensável do espírito científico, para a missão de estadista.
Tem o homem de Estado, o homem de Governo, de tomar por vezes decisões rápidas, impostas pelo imprevisto dos acontecimentos. Não há tempo para ponderada meditação, para estudo minucioso das questões; é preciso agir sem tardança. O trabalho mental que dita a decisão toma então outro aspecto.
Na vida dos estadistas, como na vida dos simples cidadãos, os actos são muita vez o produto de reflexos instintivos, cuja forma é pautada por aquela faculdade, quase adivinhatória, a que é uso chamar: intuição. Ela vem do subconsciente, formada pela experiência da vida que as sucessivas gerações que nos precederam foram acumulando, e pelo enriquecimento dessa herança pela passagem dos nossos próprios juízos, que sempre deixam rastro, embora imperceptível. Surgem assim, como que espontaneamente, as deliberações da intuição. Possuir esta faculdade em alto grau é dom excepcional. Nasce-se com um forte poder de intuição e perseverança actuante, como se nasce com o génio descobridor, que levou alguns homens, sem preparação intelectual nem erudição especializada, a fazer descobertas notáveis e engenhosas inovações.
Mas não pode negar-se que o espírito científico, o hábito de bem pensar, não tenha uma quota-parte, pequena se quiserem, mas sempre uma parte, na florescência do poder orgânico, constitucional, da intuição e da vontade.
Reivindico essa parte, a favor da minha tese, porque sente-se em Salazar a influência desse poder. A sua presciência dos acontecimentos, vendo de longe aquilo que outros condutores de povos só vêem quando está à vista de toda a gente, e a pronta decisão em várias circunstâncias difíceis, em que tem sido posta à prova a sua capacidade de governante, não podem ser o produto de ocasional estudo dos problemas a enfrentar.

(Continua)

SALAZAR - testemunhos... (11)

A Obra de Salazar à luz do sentimento histórico da sua época - por António de Almeida Garrett, Professor Catedrático e Director da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto - 28 de Abril de 1948

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